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sábado, 12 de fevereiro de 2011

Sinal verde

Imperdoavelmente atrasado. Das resoluções que fiz da vida, não poderia mais cometer esse deslize. Minha antipatia com o relógio fora marcada em minha essência desde a existência e eu estava disposto a desafiá-la. Decidido a ser conhecido por aquela pontualidade irritantemente santa, decidido a provar para o universo que sou dono de mim. Não poderia falhar, falharia comigo. Fracassar para com você mesmo é fracassar com seus ideais, com o que acredita. E a cada segundo passado, alargava-se o abismo entre o real e a glória reluzente e especial das árduas vitórias. Meu transtorno era ainda maior pela habilidade inconveniente dos carros em potencializar mormaço. O calor era tanto, que derretia minha auto-ofensa e direcionava o objeto do meu ódio ao ponto de luz vermelho que insistentemente não se tornava verde apenas para deliciar-se com meu desgosto moral.

Percorri com os olhos do relógio ao semáforo diversas vezes, na esperança de transmitir minha dor ao aparelho e que este, complacente, gentilmente me permitisse passagem. Entretanto percebi também que uma figura se aproximava da minha janela com aquele ar que somente os pedintes profissionais, aqueles passaram anos refinando a arte de em segundos provocar comoção por alguns trocados, conseguem criar. Concentrei-me para forjar minha expressão mais verdadeira e estar pronto para agradavelmente lhe dizer que não acredito em gente vagabunda que pede dinheiro no farol.


-Boa tarde! Eu trabalho para uma instituição que ajuda dependentes químicos e...
-Poxa vida, eu não tenho nada comigo agora.
-Tudo bem. Vou deixar esse folheto com você, ok?


Recebi um pedaço de papel mal impresso e mal diagramado. Feio. Criado por quem toscamente tenta criar algo atrativo sem um grande esforço. Desenhos infantis, sóis e árvores, permeavam algumas poucas frases no informe, enquanto a irritação do calor misturada com minha pessoal frustração não me permitiram dar a atenção devida ao simplório texto contido. Me furtei a ler apenas duas frases negritadas ao centro do papel "Fazemos mudanças, pinturas, limpezas, etc. DAR-NOS TRABALHO É SUA MELHOR AJUDA".
 

Entrei em choque. Atingido com um pedido tão singelo. Talvez por há poucos segundos atrás ter mentalmente rotulado aquele jovem de vagabundo. Indignado. Não consegui atribuir coerentemente juízo de valores a situação. Aqueles pouco segundos de atraso que se sucederam tornavam-se séculos ardentes em minha emergente crise de existencialismo. Eu não mal acreditava poder alcançar as mãos ao volante enquanto meu rosto perdia os contornos. Em um arrepio, descobri que o jovem, que repetia o mesmo com o carro logo atrás, era muito melhor do que eu.


Sinal verde.